“Não chamem logo as funerárias (—) que a terra me não coma vivo,” Herberto Hélder
Há várias semanas que os telejornais se enchem de notícias e estatísticas horripilantes sobre as quebras no número de voos, na ocupação dos hotéis, quiçá, até, na venda das toalhas de praia. Não sei bem quando aconteceu, ou até se terá sido de suicídio face a prognósticos tão negativos, mas vi uma reportagem num canal aberto que o confirmou na semana passada: o turismo está morto.
Esta notícia afetou-me particularmente. Como tantos portugueses, além de gostar de turistar por conta própria, vivo do turismo, pois trabalho numa empresa que gere alojamentos por todo o país. E admito, esta morte seria coisa para me mergulhar num luto profundo não fosse o conforto que sinto ao ver que tanta gente está a vir ao funeral.
Comecei a desconfiar quando marcava férias para mim mesmo. Do Gerês a Évora, Afife a Sesimbra, encontrei todas as propriedades turísticas quase completamente lotadas, muitas já para lá de Setembro. Não só isso, mas do litoral ao interior, os valores das noites não só estavam altos, como pareciam aumentar a cada refresh.

Segundo os meus colegas gestores de receita na LovelyStay, a situação é idêntica no Algarve, ainda que os hábitos de reserva se tenham alterado. As pessoas estão a privilegiar estadias mais longas, fazem reservas mais em cima da hora e optam por espaços que garantam algum isolamento. Ainda assim, as taxas de ocupação foram o dobro das do ano passado durante o mês de Junho, estando os preços para Julho idênticos aos de 2019, ainda que com uma ocupação até ligeiramente superior.
Infelizmente, o mesmo não se passa em Lisboa e Porto onde os preços diários se assemelham aos praticados em plena época baixa. No entanto, até para estas cidades a empresa está a receber dezenas de reservas por dia há mais de 3 semanas, estando a ocupação próxima dos 70% para Julho quer na capital quer na Invicta. Afinal, o que se passa?
Em parte, é natural que as pessoas estejam a fugir dos centros urbanos com maior densidade populacional. Mesmo assim, uma taxa de ocupação nos 70% indicaria que afinal há procura. Terão saído beneficiados por uma menor competição aqueles que sobreviveram aos últimos 3 meses? Com menos de 2% de anúncios eliminados do Airbnb em Portugal, não me parece.
Por outro lado, segundo dados da plataforma Transparent, os apartamentos turísticos são os preferidos na recuperação devido ao maior controlo dos contactos. Mas, mais importante do que isso é reconhecer que o turismo doméstico não recuperou apenas mas sim cresceu, estando a representar uma fatia significativa das reservas, nomeadamente daquelas que estão a assegurar rentabilidades tão boas ou superiores às do ano passado nas propriedades algarvias ou de turismo rural por todo o país.
E não, não são só os portugueses que parecem querer assistir às cerimónias fúnebres. Todos os dias são recebidos no meu escritório alemães, ingleses, belgas, e franceses, para minha agradável surpresa. Mas foi quando vi entrar a reserva de um afegão que percebi finalmente: este velório não faz sentido.
Seria intelectualmente desonesto argumentar que não vivemos uma crise enorme no nosso setor. Vivemos. Mas ao contarmos a sua história de forma incompleta, corremos o risco de contribuir para a nossa própria precariedade. Afinal porque estão os preços tão baixos numa cidade como Lisboa em que se conseguem taxas de ocupação tão altas já para Julho? O desespero coletivo que fez com que todos os proprietários de AL baixassem demasiado os preços por receio de ter as suas casas vazias até Setembro pode ter algo a ver com isso.
A cada reportagem horripilante, mais assustados ficamos e mais baixos mantemos as expectativas como os preços, destruindo as flutuações dinâmicas que emparelhariam a oferta e procura, e que maximizariam as receitas dos proprietários como as do país.
É tempo de refletir, não sobre o desastre dos últimos meses, mas sobre como endereçar essa nova vaga de procura que se faz sentir, pois é possível, e vários já o estamos a fazer. Há que pôr fim no receio que compreensivelmente permeou o sentimento público e olhar para a realidade com alguma sobriedade, ainda que cautelosa. Se não o fizermos, corremos o risco de sermos nós próprios agentes promotores desta crise que irá de facto arrasar os empreendimentos e instituições turísticas .
Ao que parece, ainda se quer visitar Portugal. As nossas cidades permanecem cultural, climatérica e financeiramente atrativas para viajantes de toda a Europa. Mais do que nunca, Portugal deixou de ser apenas Lisboa, Porto e Algarve, e quase sem notar, se reconquistou. Temos uma oportunidade única para nos reposicionarmos e reerguermos o nosso setor. Não, o turismo não está morto. Não o enterremos vivo.
Escrito por Miguel Marinho Soares